Apresentamos aqui a primeira versão pública da tradução do capítulo “Les corps sans modèle”, do livro De la figure en général et du corps en particulier: l’invention figurative au cinéma, de Nicole Brenez (1998). Trata-se do capítulo 1 da parte 1, “Economias figurativas”. A “Introdução”, intitulada “Carta a Tag Gallagher”, está disponível em tradução de Pedro Veras, no blog Culture Injection.
Esta tradução de “Les corps sans modèle” foi realizada de forma colaborativa por integrantes do Arqueologia do Sensível – especificamente: Marcelo R. S. Ribeiro, Marcelo Matos Oliveira, Roberta Mutte, Kalinka Brant e João Guilherme Batista Cardoso – e constitui um trabalho em aberto, provisório, incerto, no qual assumimos alguns riscos e anotamos certas dificuldades, ao lidar com um texto que apresenta significativa densidade filosófica, teórica, conceitual, analítica e poética.
Ao apresentar esta tradução aqui, nosso desejo é compartilhar o contato com a escrita de Brenez e, ao mesmo tempo, acolher sugestões, questionamentos e comentários para aprimorar a tradução. Para fazer isso, basta entrar em contato.
Boa leitura!
Marcelo Ribeiro
Os corpos sem modelo
Tradução em processo: Marcelo R. S. Ribeiro, Marcelo Matos Oliveira, Roberta Mutte, Kalinka Brant e João Guilherme Batista Cardoso.
Mas de início
“Os homens necessariamente existentes em comunidade não são pensáveis como simples corpos e, quaisquer que sejam os objetos culturais que lhes correspondem estruturalmente, eles não se esgotam, em todo caso, no seu ser corpóreo.” (Edmund Husserl)
No reino da efígie
Como método, #3 no cinema, seria preciso tirar os óculos do Dr. Coppelius que transformam magicamente a boneca Olympia em uma mulher viva e desejável, e distinguir radicalmente a efígie atual, esta silhueta que dança nas imagens, do corpo real. Tudo nos leva a crer, porque existe analogia, porque a imagem guarda o rastro do indivíduo que é o ator ou o figurante, que o corpo subsiste. Porque ele foi, ele resta. E assim o essencial do trabalho figurativo realizado pelo cinema é dissipado, a busca infinita e mais ou menos apavorada da semelhança no seio da aparência, esta tentativa autorizada, precisamente, pela ausência do corpo real. Ao projetar o corpo orgânico sobre as visões gerais do corpo propostas pelo cinema, nega-se a este último o conjunto das suas potências figurais, suas capacidades de abstração, sua propensão à alegoria, suas invenções figurativas, suas diversas aberrações e seu poder de previsão. Do fato de que o corpo não esteja lá, não se deve concluir que haja uma perda de substância ou uma deserção: o filme multiplica as provas disso, e é de fato porque é preciso fazer retornar algo do corpo que o cinema está vivo.
These corpses are young and active – Kung Fu Zombie
Estes cadáveres são jovens e ativos – Kung Fu Zombie
(As citações inglesas são extraídas de Stefan Hammond e Mike Wilkins)
O filme preserva duas dimensões do corpo efetivo. Primeiro, o seu movimento, o seu traçado, as suas passagens – Na passagem de algumas pessoas por uma unidade de tempo muita curta (Guy Debord, 1959) é o título incontestável, o título de todos os títulos de filmes. Depois, o fato de que, concreto ou desrealizado, em ambos os casos o corpo é uma elaboração simbólica. Mas não a mesma: a contrario, quando uma figura esposa fielmente a ideologia do corpo da qual ela é contemporânea, como atualmente Arnold Schwarznegger, endossa todos os aspectos dessa ideologia até a demência figurativa, ela consente com a obscenidade. Com uma notável sistematicidade, os filmes de Schwarzenegger trabalham sobre o duplo, duplo interior (o esqueleto dos Exterminadores) ou projeção do mesmo (reflexo em Last Action Hero, gêmeo em Gêmeos, holograma em The Running Man, ficções esquizofrénicas de Total Recall ou Eraser…), e nos damos conta hoje que a sua obra fílmica nos contou durante quinze anos o que se preparava secretamente nos laboratórios científicos: a possibilidade da clonagem humana. A obscenidade ideológica consiste em se encarregar das angústias humanas face ao corpo para simplificá-las e lhes dar a imagem mais rápida disponível, a mais imediata, não importa qual. Mas por vezes a obscenidade torna a figura comovente e até mesmo bela quando trata a contradição e a aporia por elas mesmas, como em Terminator e Predator, onde o devir funcional da anatomia é confrontado com a sua própria inanidade (o robô de Terminator não precisava de músculos, o soldado de Predator precisaria de um pouco deste Outro que ele destruiu completamente na selva), e que tal falha finalmente entrega os monstros a uma melancolia muito humana. Então somente a pesada silhueta do atleta encontra uma espessura e a efígie enorme se torna importante.
Arquétipos (lembrete)
Quatro modelos figurativos clássicos informam nossa apreensão do corpo e lastreiam a efígie cinematográfica com o seu peso artístico e cultural: o modelo orgânico, o modelo lógico, o mecânico e o Fetiche.
Beware! Your bones are going to be disconnected. – Savior of the Soul
Que o primeiro dos esquemas que permite pensar o corpo seja o modelo orgânico parece uma evidência, até mesmo uma redundância. Entretanto, basta ler, mesmo em toda a ignorância médica, Das Partes dos Animais de Aristóteles, as Voyages de Ambroise Paré ou Naissance de la Clinique de Michel Foucault para compreender a que ponto a própria organicidade dos corpos é um canteiro infinito que se elabora de maneira tanto objetiva quanto simbólica. (Também, nesta história científica do corpo, o cinema não se reduz a um instrumento passivo, ele não é somente “a senhorita da gravação” [la demoiselle de l’enregistrement]): “a história dos estudos cinematográficos sobre o movimento é uma dimensão crucial na história do corpo humano”). Para além da pesquisa figurativa permanente sobre o movimento, a anatomia, a carne, o cadáver, o corpo escalpelado [l’écorché], o esqueleto, duas particularizações tradicionais do modelo orgânico trabalham o cinema. Primeiro, o modelo animal, que contribui para naturalizar o comportamento ou as emoções, de um modo fisiognomônico como na representação dos Dedos-duros de A Greve (Eisenstein, 1924) ou os créditos de The Women (George Cukor, 1939), ou de um modo figural, como em The Addiction (Abel Ferrara, 1995), onde a orgia final faz retornar o animal no monstro humano, não para qualificá-lo, mas para desqualificá-lo, para trazê-lo de volta à crueza de sua falta e à pura violência da avidez. Depois, o modelo vegetal que, pelo menos desde as Metamorfoses de Ovídio, reenvia a uma circulação ainda mais vasta que a comparação animal. O vegetal é o outro do homem, a outra criatura viva, mas que não se assemelha a ele – aquela pela qual é preciso passar para alcançar a alteridade sem contudo atentar contra o contorno corporal (as vagens de feijão nos três Body snatchers, human beings/human beans).
African vampires don’t go for Chinese women. – Armour of God II: Operation Condor
O modelo lógico ou ideal não está indexado à natureza ou a uma naturalidade, mas é oriundo seja da criatividade exclusiva de um artista (reivindicação do humanismo clássico), seja de uma necessidade exterior (a forma ideal segundo Platão), seja das regras de construção legadas pela tradição. No cinema, é o modelo mais potente para elaborar as criaturas, que não são em primeiro lugar indivíduos (é necessária a atenção de Jean Rouch, é necessária a melancolia de Jonas Mekas, é necessária a modéstia de Jean Eustache em Odette Robert para acessar efeitos de presença e de singularidade viva), mas Casos. Casos sociais (como em todo o cinema hollywoodiano, cinema do Individualismo sem indivíduos), emblemas, exemplos, tipos, esboços, sínteses [abrégés]… Exceto por exemplo em Jean Vigo, Godard, Barnet ou Stan Brakhage, o cinema visa raramente a vida, ele pretende mais frequentemente à inteligência dos fenômenos que soldam ou fraturam as comunidades humanas. Nesse sentido o cinema, fundamentalmente, é uma arte abstrata. Entretanto, por mais manifesta que ela seja, uma tal propriedade lhe é frequentemente negada, à maneira de Barthes que só retinha do cinema a gravidade analógica. De modo que se pode ler: “seria difícil encontrar [na obra de Howard Hawks] uma só ideia abstrata”, ainda que em Hawks certos sistemas figurativos sejam inteiramente conceituais, muito mais do que nos Straub ou no último Godard. Assim Viva Villa! que reproduz com um rigor perfeito a noção hegeliana de Grande Homem ou Sergeant York que alegoriza aquela do indivíduo americano, tal como Tocqueville a tinha descrito em Da Democracia na América.
O cinema é logicista e a obra mais logicista que existe logicamente se intitula Film (Samuel Beckett, 1965).
I have piles. You won’d be comfortable. – Ghostly Vixen
O terceiro grande esquema figurativo é o modelo mecânico, que se torna maquínico no final do século XIX e faz nascer a “literatura do metal”, o Construtivismo, o Futurismo, o imaginário do robô e, para resultados muito diferentes, as cinematografias de Eisenstein e de Dziga Vertov. “Pela poesia da máquina, iremos do cidadão lerdo ao homem elétrico perfeito.” “O novo homem, libertado da canhestrice e da falta de jeito, dotado dos movimentos precisos e suaves da máquina, será o tema nobre dos filmes.” Vê-se bem que a herança figurativa de uma tal concepção do corpo não foi legada ao Exterminador ou a outros robôs de menor envergadura, que são velhas máquinas do século XIX, máquinas desajeitadas cuja única dinâmica é a de caminhar cada vez pior e cujo único devir é o de não mais caminhar. O homem elétrico perfeito seria antes Katharine Hepburg cuja dicção proíbe de pensar que ela pensou o que ela diz, dicção tão rápida que ela autonomiza a fala e transforma o corpo em autômato muito espiritual. É Jet Lee, cujas torções laterais e cujos passes de mágica varrem os limites do movimento humano. Todas as figuras que recolocam em jogo a relação do corpo consigo mesmo em uma preocupação [dans un souci] de perfeição que atesta por vezes bastante humildade, como Keanu Reeves em Velocidade Máxima (Jan De Bont, 1994), que não precisa nem refletir nem experimentar, que é pura ação e mesmo pura operatividade no ato e, por isso, não se assemelha a nada, a não ser um cabo elétrico.
O quarto modelo é o fetiche, ou seja, tudo o que incorpora alteridade no corpo, seja este Outro ausência, um excesso ou uma falta [défault] de presença, o alhures, o outramente, a falta [manque]… Existem três manifestações privilegiadas desse modelo. O eidôlon, que é uma categoria da imagem e do Duplo em geral. Jean-Pierre Vernant listou de modo exemplar suas ocorrências na cultura grega, por exemplo aquela do kolossos (“o kolossos tem como vocação evocar o ausente, substituí-lo dando corpo à sua não-presença”) ou aquela do phâsma (“produzido por um deus à semelhança de uma pessoa viva”). De maneira a-histórica, seria preciso adicionar aí o deus, o anjo, o vampiro, tudo o que manifesta um além na forma do humano. Com a Estatueta, aparece um aquém na forma humana e assistimos então ao espetáculo do corpo privado de certas das suas faculdades, atenuado [délesté], reduzido [allégé] talvez e talvez com mais clareza. Assim, a marionete, a Boneca, o Retrato, isso que releva da miniatura [maquette], do esquema/épura [épure] e do esboço [esquisse], estatuetas que abrem para uma vertigem de semelhança e das quais Os Contos de Hoffmann (1951) de Powell e Pressburger exploram com felicidade as virtudes metafóricas. Mas a Estatueta pode ser o corpo em si mesmo, reduzido ao seu contorno plástico, como em Busby Berkeley por exemplo. Um último avatar da Estatueta resulta da geometrização do corpo, soldados como peões de xadrez em Alexandre Nevski ou multidões geométricas em Fritz Lang. Enfim, o terceiro e o mais crucial nos fetiches é o Ponto de Referência [Repère], é o homem-padrão, o homem medida de todas as coisas de Protágoras, que estabelece a escala dos fenômenos e as coordenadas do espaço. E quando o Ponto de Referência vacila, como Godard se dedica a fazer na abertura de Nouvelle Vague (1990) assimilando a silhueta de Alain Delon a um marcador indiferente, imediatamente a figura humana se inclina ao informe, ela não passa de um acidente, uma pequena coisa perdida na Natureza libertada [délivrée] de seu estado de paisagem.
Protótipos (hipóteses)
Todos esses corpos, o Emblema, John Doe o verossimilhante, o Monstro animal, a Máquina, o estudo anatômico, o ponto de referência [repère] e tantos outros pertencem ao cinema, que os compartilha com o conjunto das outras disciplinas e os trabalha à sua maneira. Mas gostaríamos de propor a hipótese de que o cinema é suscetível também de produzir corpos sem modelos, seja a título de acontecimento figural no seio de uma economia figurativa, seja elaborando economias autônomas. Eis quatro lógicas originais: o circuito plástico; o corpo crítico; o contra-modelo patológico; o Fantasmas.
How can you use my intestines as a gift? – The Beheaded 1000
Não se deve confundir o circuito plástico com as experiências de Kuleshov, “a geografia criativa”, “a mulher ideal” ou “o balé cinemático”: o princípio de constituir um fenômeno reunindo partes retiradas de corpos distintos é atestado desde Zeuxis pelo menos, que escolheu e montou [monta] juntas as partes mais belas de cinco jovens de Agrigente para pintar um retrato digno do templo de Junon. No circuito plástico, o corpo não está já dado e não o será nunca, talvez, o corpo resulta de uma sintaxe ou de uma paralaxe visual e sonora que não hesita em se deixar no estado de esboço perpétuo, em construí-lo como uma contradição impraticável, até a recalcá-lo fora-de-campo. Existem pelo menos dois tipos de circuitos. Primeiro, a síntese dispersiva, cuja ocorrência mais bela permanece a criatura não atribuível de Cat People (Jacques Tourneur, 1942), síntese não encontrável de fenômenos de semelhança e cuja manifestação local mais convincente se desenha nos escurecimentos da imagem [dans les fondus au noir]. Com a quimera de Jacques Tourneur, fugindo de sombra em sombra e de metáforas em analogias, discerne-se melhor de que é capaz uma economia figurativa: ela produz criatura ali onde não há mais nem mesmo corpo e ela afeta cada corpo efetivo com uma dinâmica difusa. O cinema é rico em tais monstros puramente deduzidos das propriedades da montagem, como aquele de Suspiria (Dario Argento, 1976), absolutamente heteróclito, ou aquele de Predator (John McTiernan, 1987), empilhamento de alteridades – o Predador é um extra-terrestre, o invisível da natureza, uma besta, um monstro marinho e vegetal, um robô, uma onda elétrica, uma mulher, um Negro, um espelho… de modo que o circuito se fecha sobre uma sinonímia. Em todos os casos, trata-se de uma formalização do aparecer experimentado como estranheza angustiante, de modo que as criaturas mais monstruosas de todas permanecem sem dúvida as figuras de Vittoria e Pietro em O eclipse (Michelangelo Antonioni, 1962), cuja desaparição reenvia a cada vez à sua precariedade e propaga sobre o conjunto da paisagem urbana ordinária uma tonalidade apocalíptica.
O outro grande tipo de circuito plástico considera os corpos de um modo não mais dispersivo, mas intensivo. Trata-se de aprofundar uma mesma imagem, de fazê-la variar, de exumar seu escândalo e portanto sua verdade. Os filmes de Abel Ferrara, por exemplo, são quase todos estruturados assim: nós assistimos a um espetáculo cotidiano e esse gesto ou essa atividade banal retornará, no final do filme, em sua forma insustentável e catastrófica. O Mau Tenente leva seus dois filhos à escola em um subúrbio tranquilo; mais tarde ele os levará [37] disfarçados de dois estupradores em uma Nova York totalmente destruída (Vício Frenético, 1992). No carro que a leva à sua nova casa, Marti afasta seu irmão mais novo que a irrita; mais tarde, ela o jogará de um helicóptero em pleno voo, logo antes de fazer explodir tudo o que lhe é familiar (Body Snatchers, 1994). Ocorre o mesmo em Driller Killer [O assassino da furadeira], China Girl, Ms. 45, concebidos segundo essa estrutura anamórfica. Os grandes filmes de Brian De Palma, Martin Scorsese, Takeshi Kitano, John Woo e certamente David Lynch se dedicam a alterar uma imagem, produzindo efeitos de aprofundamento [approfondissement], como se fosse preciso passar por uma anamorfose, por uma duplicação [doublure] do mundo, por um Anti-Mundo para finalmente acessá-lo. Dito de outra forma, as fabulações contemporâneas ocupam o campo da figurabilidade, os filmes se ocupam em traduzir [translater] uma realidade de referência em pesadelo ou em afirmar sua natureza de anamnese – é necessária essa viagem para que a segunda imagem possa manifestar a verdade e o sofrimento dissimulados na primeira. Uma tal investigação sobre o gesto humano encontra o seu ponto culminante em Estrada Perdida (David Lynch, 1997): esse filme sobre a loucura não mostra mais nenhuma imagem do real, nós estamos imediatamente na duplicação [doublure] e é preciso deduzir a imagem inaugural, aquela que é traduzida [translatée] no decorrer do roteiro, a partir de suas versões catastróficas. Imagina-se então um supliciado que morre em uma cadeira elétrica e cujos sobressaltos fazem jorrar tantas lembranças, fantasias e sensações, três regimes de imagens que o filme distingue com habilidade. A lembrança é aquela, confusa, do assassinato – princípio brilhante: os planos que mais se aproximam do real são também os mais plasticizados, são sobretudo imagens, filmadas em vídeo, fragmentárias, desfocadas, nos limites do identificável. O regime da fantasia se duplica: primeiro, o roteiro [scénario] de morte (descrição da vida de casal, monótona, monocromática, cerimonial, quase hierática, à maneira dos afrescos em um túmulo egípcio – heroína de cabelos castanhos); em seguida, a fantasia de um roteiro de morte (regime do clichê narrativo, plástica popular, juventude, vitalidade burlesca – heroína de cabelos loiros). Finalmente, o regime da sensação elétrica unifica o percurso das sequências estroboscópicas e corresponde às cenas mais importantes da vida do narrador, aquela da música, aquela do abandono, do trauma “Você nunca me terá” do abraço no deserto [de l’étreinte au désert], aquela do último suplício. Apesar de sua complexidade (mas se trata sempre de utilizar o material natural do cinema: a projeção de imagens), o segundo circuito plástico, essa sintaxe do figurável, se torna o modo maior de organização fílmica no cinema americano contemporâneo.
E se, ao contrário, nos ativermos à efetividade dos corpos? Há verdadeiramente um corpo, mas há uma verdade, e como dizê-la? São os corpos críticos, diante dos quais a fala desiste [la parole renonce], os corpos reveladores próprios ao cinema documental e à dimensão documental de todo o cinema. Veja-se, ao acaso, esses fragmentos etnográficos: a expedição Haddon, 1898-1899, [38] a expedição Spencer na Austrália, 1901, a expedição Krämer nos Mares do Sul, 1908, a expedição Pöch, 1908 – com seu rolo fotográfico. Quando os etnólogos registram as cerimônias, as máscaras, o trabalho, as danças, as brincadeiras [les jeux], há nisso matéria de saber, as aparências e os movimentos se inscrevem em cenografias que adicionam as qualidades e facilitam o discurso. Mas quando Krämer ou Pöch filmam simplesmente homens brincando [jouant] nas ondas, corpos que não fazem nada, que não estão mais nem ritualizados nem ocupados, corpos livres, entregues/liberados [livrés] à sua plenitude, o que dizer ainda do corpo? Como falar da comunidade humana como familiaridade? Quando se acaba de constatar a estranheza de todos em relação a todos e de cada um em relação a si mesmo, entra-se de novo na questão da comunidade humana, do pertencimento a uma espécie. É uma entrada bastante terrível, por imagens de felicidade, Jean Rouch em 1955 as recolocará em jogo em uma sequência de praia antológica em Eu, um negro, na qual se pode ouvir o sonho em voz alta de Oumarou Ganda, “ser um homem feliz, como todos os homens”. O princípio do corpo sem modelo não se impõe nunca mais aqui, no momento em que eu reconheço um semelhante de modo absoluto, não um indivíduo, mas esse corpo que impõe sua extrema familiaridade, ali onde precisamente não há outro. O Outro representa o conjunto desses possíveis basicamente muito reconfortantes que bordejam a criatura informe [L’Autre représente l’ensemble de ces possibles au fond très rassurants qui bordent la créature informe]; mas, na experiência da fusão, do pertencimento partilhado à comunidade, todo modelo é abolido, o homem é reenviado às suas características de espécie, portanto ao seu corpo, não ao título de um estado de natureza, mas como uma questão dinâmica, aquela da “comunidade que vem”. O cinema renova constantemente essa dialética inicial entre a plasticidade ordinária das aparências e a evidência indescritível do corpo. É a fórmula de Jean Epstein: “a vista cambaleia sobre as semelhanças” [la vue chancelle sur les ressemblances – Écrits, I, p. 183].
A necessidade da ficção é adquirida aqui. A ficção enfrenta de outra forma um tal obstáculo e permite encontrar as imagens que poderão dizer e modular o caráter inexorável do sentimento antropológico. Por exemplo, é a invenção de David Lynch em Lost Highway, literalmente sublime, uma vez que, mal hesitando diante da demência da hipótese, trata-se de atravessar um limiar: o protagonista se afunda na escuridão à espreita no interior de sua casa, ele desaparece lá, escuro, ele retorna, onde ele esteve, mudou, é o mesmo ou um outro? Isso não tem mais importância, a história pode ser retomada com um novo personagem, as duas criaturas compartilham a mesma doença, elas se comunicam pelo mesmo inconsciente, Merleau-Ponty escreve em algum lugar “Não há um grande animal de que nossos corpos sejam os órgãos”, Lynch filma o grande animal, a membrana que religa os homens, apesar de tudo, ele filma o pertencimento à espécie. Momento excepcional do cinema, que no entanto diz apenas isso, convidando-nos a cada dia a sonhar juntos um sonho indiferenciado na hospitalidade de sua noite.
[39]
O terceiro protótipo é aquele do contra-modelo patológico. Proust descreve as virtudes heurísticas da doença na apreensão do corpo. “É na doença que nós nos damos conta de que não vivemos sozinhos, mas encadeados a um ser de um reino diferente, cujos abismos nos separam, que não nos conhece e para o qual nos é impossível nos fazermos compreender: nosso corpo. Algum ladrão que nós encontremos em uma estrada, talvez possamos chegar a torná-lo sensível ao seu interesse pessoal, senão à nossa infelicidade. Mas pedir piedade ao nosso corpo é discorrer diante de um polvo, para quem nossas palavras não podem ter mais sentido do que o barulho da água e com o qual nós ficaríamos apavorados por sermos condenados a viver…” (tradução livre; conferir também a tradução de Mario Quintana: “Na doença é que descobrimos que não vivemos sozinhos, mas sim encadeados a um ser de um reino diferente, de que nos separam abismos, que não nos conhece e pelo qual nos é impossível fazer-nos compreender: o nosso corpo. Qualquer assaltante que encontremos numa estrada, talvez consigamos torná-lo sensível ao seu interesse particular, se não à nossa desgraça. Mas pedir compaixão ao nosso corpo é discorrer diante de um polvo, para quem as nossas palavras não podem ter mais sentido que o rumor das águas, e com o qual ficaríamos cheios de horror de ser obrigados a viver.”). Na doença, descobre-se o corpo como aterrorizante e impraticável estranheza. As trajetórias de Nanni Moretti em seu Diário Íntimo (1994) descrevem em qual dinâmica de angústia nos precipita o mal, como então nada mais é familiar, como por exemplo a Itália não cessa de se esconder onde quer que se procure – exceto talvez próximo do mausoléu de Pasolini na praia de Ostie, mas é porque ele está ainda mais arruinado, ainda mais deteriorado, patético.
O cinema dispõe de muitas soluções para fazer emergir o polvo e, assim, elaborar contra-modelos patológicos, que destacam o corpo de suas aparências para figurar mais profundamente sua experiência – a prova [épreuve]. O cinema pode trabalhar o corpo como puro arrancamento, devoração completa do Eu ou da criatura. O filme dessa angústia é certamente o Body Snachers de Abel Ferrara, em que o Eu é engolido por um sonho de corpo representado sob a forma de tentáculos, de ligações pegajosas, de invasões imundas. Body Snatchers organiza a coexistência problemática de três tipos de corpos. Primeiro, frágil e belo, aquele das presas humanas, Marti, seu pai, sua madrasta, seu namorado. Em seguida, aquele dos clones, tratado simultaneamente de três maneiras que se conectam muito mal e criam dessa forma uma figuração teratológica. O corpo clonado aparece às vezes com uma má figura (brilhos sorrateiros dos olhares, gritos de possuído), às vezes como efígie anônima (os soldados, silhuetas ordenadas, simples contornos corporais, sombras sem referente), às vezes como gênese biológica (invenção de uma anatomia fantástica ao mesmo tempo vegetal e aquática, feita de ligações indevidas, de circulações abusivas, de prolife- [40] rações terríveis: literalmente, o polvo de Proust). Finalmente, alguns planos de corte mostram criaturas cuja natureza não podemos decidir: ainda humanas, já transformadas, vítimas isoladas ou reflexo maldoso? São os planos mais importantes do filme: retratos indiscutíveis, figuras indecidíveis, eles tratam frontalmente do caráter letal da humanidade ordinária. Body Snatchers é um romance familiar sonhado por uma jovem garota que gostaria de se livrar de sua madrasta e de seu meio-irmão. Body Snatchers é um filme sobre a mutação tóxica infligida ao mundo pelo capitalismo desde Hiroshima, mas onde, diferentemente de Gozilla VS the Smog Monster (filme de Yoshimitu Banno, Japão, 1972) ou The Pollution Monsters (“The ecologhouls of doom!”, Skywald Publishing Co, cerca de 1970) que descreviam a mesma coisa, o monstro se encontra tanto no campo quanto na sintaxe figurativa. Body Snatchers é uma ilustração experimental da gênese física da matéria segundo Epicuro: uma chuva de átomos cósmicos banha as imagens, respinga por toda parte nos fundos e brilha em torno das figuras [NOTA 10]. No momento da metamorfose dos corpos, a matéria original descrita por Lucrécio brota no mundo em favor de eventos de luz, essa pulverização arcaica afirma que tudo vai recomeçar desde o início, mas pior ainda, integralmente absorvido na alteração, o humano não é mais que um devaneio de desaparição.
Um outro contra-modelo patológico trabalha no sentido inverso sobre o em-si do corpo, sobre sua autonomia, ele quer reduzir o corpo à sua matéria bruta, ele procura sua clausura, visa sua finitude. O filme dessa angústia seria o Jeanne Dielman de Chantal Akerman (1975), que consigna com exatidão uma vida absolutamente devorada pelo cotidiano, Jeanne Dielman inteiramente absorvida em seus gestos, arrumar a cama, fazer as compras, cozinhar, fazer amor, arranjar dinheiro e dar ao seu filho – em tudo isso imóvel, petri- [41] ficada em cada um de seus atos, ao qual se identifica sem resto/sem deixar vestígios [sans reste]. O Eu então não é mais do que essa sucessão de atos cíclicos, que permite a Jeanne economizar interioridade [faire l’économie de l’intériorité]. Mas que, por acidente, um cliente a faça gozar, ela sai de si mesma, então a revolta irrompe, o espírito ausentado retorna e é uma loucura, é preciso punir o culpado, Jeanne se separa a golpes de tesoura do carrasco que a fez se lembrar da existência do corpo. Jeanne: ser um corpo; Akerman: não, ter um corpo. (No entanto, sobre a fantasia da finitude encarnada por Jeanne Dielman, esgotada em sua aparência, fechada pelo visível, pode-se sonhar por muito tempo: que fazem Jeanne e seu filho quando saem para passear à noite, depois de escurecer? Que faz Jeanne quando de repente, nessa ocasião extraordinária, não a vemos mais? E se fosse um vampiro?)
Same old rules, no eyes, no groin. – Bloody Mary Killer
O “Fantasma” é um quarto protótipo. Não que o cinema tenha inventado o espectro, mas ele é povoado por fantasmas que não são a sombra de alguma outra coisa, de um desaparecido, de uma divindade, de um outro lugar qualquer… fantasmas que seriam em si mesmos seu próprio fantasma. A aparição de tais criaturas desafia a diferença entre vida e morte, eles alteram o espaço que os cerca em limbos perpétuos e favorecem todo tipo de extravagância narrativa: Cosmo Vitelli em Killing a Chinese Bookie (John Cassavetes, 1978), os figurantes em Heaven’s Gate (Michael Cimino, 1980), o Pale Rider de Clint Eastwood (1985) ou seu William Munny em Unforgiven (1992), o protagonista de Dead Man (Jim Jarmusch, 1996), ou mesmo o Ace Rothstein de Casino (Martin Scorsese, 1996), volatilizado pela falta de amor… Eles vêm como almas penadas, incapazes de chegar tanto à existência quanto à desaparição, presas de um fatum [?] profano ao qual resistem com toda a sua ausência de peso. O cinema hoje produz em massa tais figuras, mas elas não são todas negativas ou defeituosas, ao contrário. Algumas delas são as mais fortes figuras de afirmação que o cinema jamais produziu, porque elas transformam “o desejo de abandonar este mundo pelo outro em um desejo de abandonar um outro mundo por este aqui” [NOTA 11]. Elas gostariam de ser seu corpo, seu aqui e agora, no qual querem se transformar. A primeira sequência de Carlito’s Way (Brian De Palma, 1994) oferece sua manifestação mais eufórica até hoje: Carlito Brigante descreve sua transformação, seu devir, suas resoluções, ele agradece a cada um dos assistentes, é aplaudido como um ator, ele acredita que está no Oscar, se acredita que ele zomba do mundo e, no entanto, – é um acontecimento [événement] considerável no cinema de De Palma – terminamos por compreender, trabalhosamente, que ele dizia a verdade, que ele estava verdadeiramente do lado da vida. Assim o cinema pode arrancar a criatura da facticidade e devolvê-la a si mesma.
[42]
Uma história interessante
What you need is a canned woman. – To Hell With the Devil
Em um filme de James A. Williamson, An Interesting Story (1905), um homem se apaixona por uma narrativa ao ponto de não ver mais nada além de seu livro. Indiferente ao mundo, ele desencadeia os piores acidentes ao seu redor, ele bebe seu café em seu chapéu, ele inverte baldes, mesas, carros, ele confunde os homens, as mulheres e os objetos, até cair ele mesmo sob um enorme rolo-compressor. Ele sai dali todo achatado, mas dois ciclistas que passam vêm ao seu socorro e o inflam novamente com sua bomba de bicicleta. Ele retoma seu caminho. Ele triunfa sobre todas as destruições, é o homem do cinema.
Deixe um comentário