Histórico e marcos conceituais do grupo (an)arqueologias do sensível

Por Adil Lepri e Marcelo Ribeiro, em setembro de 20241Para citar este texto: LEPRI, Adil; RIBEIRO, Marcelo R. S. História e marcos conceituais do grupo (an)arqueologias do sensível. GAS – grupo (an)arqueologias do sensível, 2024. Disponível em: https://gas.ufba.br/sobre..

O grupo (an)rqueologias do sensível busca refletir sobre a imagem em sentido amplo, em perspectiva histórica e antropológica, com um interesse aberto em diversas possibilidades de estudos e experiências. Criado em abril de 2018 e sediado na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA), o grupo se reconfigurou em 2023, quando se encerrou um período inicial com a designação Arqueologia do Sensível, sob a coordenação conjunta de Marcelo R. S. Ribeiro e Marcelo M. Costa. Depois que este último foi transferido para a Universidade Federal de Pernambuco, a designação passou a ser grupo (an)arqueologias do sensível, no decorrer de 2022. No ano seguinte, o professor Adil Lepri ingressou como docente na Facom/UFBA, vindo a se integrar ao grupo, que passou a ser liderado por Marcelo R. S. Ribeiro e Adil Lepri desde 2023.

Com base em atuação institucional nos estudos de cinema e audiovisual e na comunicação, pretende-se explorar possibilidades de diálogo entre perspectivas dos campos da história, da antropologia, da literatura, dos estudos de arte e cultura visual, das humanidades digitais, entre outros horizontes de interlocução, para tornar possível a constituição de uma rede de pesquisa. O que define essa rede em construção é a partilha do interesse em um horizonte empírico ampliado, definido pelo conceito de sensível, e em uma abertura metodológica radical, definida pelos conceitos de arqueologia e anarqueologia, entrelaçados em uma grafia que torna legível tanto a sua duplicidade quanto a sua pluralização: (an)arqueologias.

O campo dos estudos de cinema e audiovisual é essencialmente interdisciplinar em sua história, mas não é certo que a abertura radical que corresponde a essa condição permaneça operante em suas configurações atuais e nas pesquisas que encontram em tais configurações parte fundamental de suas condições de possibilidade. Este grupo está relacionado, em parte, a um desejo de reivindicação da interdisciplinaridade, entendida tanto como a mobilidade entre diferentes campos disciplinares institucionalizados quanto como a recusa ativa de toda forma de captura disciplinar e institucional do discurso e da imaginação, e visa à elaboração de um programa intersticial de pesquisa inscrito no entre-lugar indisciplinar que torna possível toda interdisciplinaridade – denominado (an)arqueologias do sensível.

Recusar a captura disciplinar e institucional não é supor um espaço neutro, não disciplinar e não institucionalizado, mas engajar-se na produção de um espaço de rigor indisciplinado e de deriva contra-institucional do pensamento, da pesquisa e da experimentação. O espaço intermediário da indisciplinaridade não deve ser confundido com aquele designado pelo conceito de transdisciplinaridade, tal como se consolida na Carta redigida por Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu, adotada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, no Convento de Arrábida, em Portugal, no dia 6 de novembro de 1994, mas ambos estão relacionados. Efetivamente, pode-se dizer que transdisciplinaridade e indisciplinaridade constituem duas modalidades de deslocamento da economia geral da interdisciplinaridade, a qual é baseada na construção de uma ordem multidisciplinar dos saberes e no estabelecimento de procedimentos de comunicação entre as disciplinas.

Se a transdisciplinaridade opera sob o signo de uma integração dos saberes multidisciplinares, a indisciplinaridade reivindica o reconhecimento das fraturas, das frestas, das fissuras, que resguardam possibilidades de associação disjuntiva. Se, como se lê no artigo 3º da Carta de 1994, “a Transdisciplinaridade é complementar da aproximação disciplinar”, a indisciplinaridade é suplementar, acrescentando às lacunas entre as disciplinas um excesso que permanece irredutível a elas e à soma entre elas, sem possibilidade de encaixe e de integração. Se, enfim, “a Transdisciplinaridade não procura o domínio de várias disciplinas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as atravessa e as ultrapassa”, definindo uma relação transversal com os saberes multidisciplinares, a indisciplinaridade estabelece uma relação geológica com a economia geral das disciplinas: não um atravessamento que deve finalmente obedecer às leis de fronteira que as separam, mas um deslocamento profundo das placas, dos marcos e das paisagens em que a possibilidade da fronteira deve buscar seu fundamento a cada vez em que é demarcada, permanecendo, contudo, impossível de fixar.

Como programa indisciplinar, as (an)arqueologias do sensível decorrem da produção e da reprodução de uma tensão, de um desajuste, de uma inquietação diante das formas de captura disciplinar e institucional que as assombram, situadas no interior de campos diversos, como a história e a história da arte, a sociologia e a antropologia da arte e da cultura, os estudos culturais, os estudos de arte e cultura visual e os estudos de cinema e audiovisual, as humanidades digitais e os estudos de plataformas, entre outros. Dessa forma, as (an)arqueologias do sensível não são redutível a qualquer um desses campos, aos quais estão relacionadas de modo variável e ambivalente, pois buscam questões, procedimentos e interesses em cada um deles, ao mesmo tempo em que reintroduzem uma estranheza em seu interior e deslocam suas coordenadas. Para compreender como opera essa reintrodução de estranheza e esse deslocamento de coordenadas, na relação entre as (an)arqueologias do sensível como nebulosa teórico-metodológica indisciplinar e contra-institucional, de um lado, e as constelações de campos disciplinares e interdisciplinares institucionalizados com os quais dialogam, de outro, é preciso definir os conceitos de sensível e de (an)arqueologias.

O conceito de sensível

O horizonte empírico ampliado indicado pelo conceito de sensível deve ser compreendido como parte de um questionamento de classificações fechadas das formas artísticas e culturais, baseadas em noções de especificidade dos meios, de autonomia das formas e de constituição de campos sociais que é preciso interrogar, em vez de assumir como pressupostos. Nesse sentido, o conceito de sensível designa a imagem em sentido amplo, recobrindo os objetos associados ao contexto institucional em que o grupo se situa – o cinema e o audiovisual, este último uma noção corrente, embora imprecisa, mas que no contexto do grupo se volta especificamente e de maneira central para os vídeos no contexto das plataformas de redes sociais – e incluindo, igualmente, a literatura e a dança, para dar dois exemplos de modalidades artísticas muito diferentes entre si, ou a arquitetura e as experiências de transe, para dar dois exemplos de modalidades que indicam o transbordamento da arte.

“A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva”, como escrevem Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010, p. 193), mas “não é à maneira da indústria”, uma vez que “[o] que se conserva […] é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos”. Se a arte se define, assim, como a composição de blocos de sensações que conservam e se conservam, isto é, mais simplesmente, de imagens que duram e que configuram experiências estéticas, o conceito de sensível implica a possibilidade de um transbordamento e de uma passagem a esferas de imagens que se perdem e se perderam, que se transmitem de modo fugaz, cuja forma de aparição é indissociável de seu modo de desaparição – tais como imagens de sonho ou sensações dispersas (que não constituem blocos e permanecem, portanto, aquém da composição artística, tal como a definem Deleuze e Guattari).

Ao mesmo tempo, interessa-nos pensar a história do cinema e do audiovisual a partir do reconhecimento dos modos de inexistência que a constituem, em uma relação dupla com os arquivos e corpora estudados: não apenas as histórias dos filmes já feitos, como repete Jean-Luc Godard, em História(s) do cinema (1988-1998), mas “todas as histórias dos filmes / que não foram / jamais feitos”; não apenas as histórias dos blocos de sensações da arte e de suas constelações formais, mas as histórias do que não chega a se consolidar como bloco e como forma, as histórias das nebulosas do informe que atravessam a arte e a experiência sensível. Por isso, é fundamental desdobrar as possibilidades de diferentes cartografias do cinema e do audiovisual, desde o “atlas do cinema mundial” (Andrew, 2004, 2010, 2013) até as “constelações fílmicas” (Souto, 2020), passando pelo “atlas de emoções” (Bruno, 2002) e por experiências de montagem como método de conhecimento (Didi-Huberman, 2018a; Reinaldo; Dos Reis Filho, 2019). Ao mesmo tempo, propomos experimentos com a análise figural (Brenez, 1998), nos quais têm se insinuado as possibilidades teóricas e metodológicas das nebulosas (Garofalo, 2021) e da espectralidade (Derrida, 1994; Romandini, 2018), das quais temos nos aproximado cada vez mais.

A experiência estética que está em jogo nos blocos de sensações da arte se inscreve no meio da experiência sensível, no que Emanuele Coccia (2010, p. 45) denomina “espaço medial”, definido pela “potência suplementar e escondida, a faculdade receptiva” das coisas (Coccia, 2010, p. 31), isto é, a “potência receptiva” (Coccia, 2010, p. 32) que torna possível que qualquer coisa, qualquer corpo, qualquer ente se tornem “meio para outra forma que existe fora de si”. O sensível se define, portanto, por seu pertencimento ao “espaço medial” em que habitam as imagens, em geral (e no qual as imagens artísticas intervêm como blocos de sensações), e por sua “simultânea autonomia em relação ao sujeito e ao objeto” (Coccia, 2010, p. 45). A potência ou faculdade receptiva que define o espaço medial da experiência sensível se desdobra, em todo vivente, na capacidade de emissão e de produção de sensível, a qual alcança, entre os seres humanos, segundo Coccia (2010, p. 43), “um maior grau de complexidade”.

A arte figurativa, a literatura, a música, mas também grande parte das cerimônias políticas e a totalidade das liturgias religiosas constituem, antes de tudo, em atividades de produção de formas sensíveis. Todos os nossos costumes, os nossos hábitos, se encarnam em um sensível desencarnado de nosso corpo anatômico; qualquer objeto técnico é uma incorporação sensível, uma “sensificação” de vontade, subjetividade, espiritualidade. O homem, no mais e acima de tudo, não faz senão sensificar o espírito, sensificar sua racionalidade. Escrever, falar e até mesmo pensar significam, sobretudo, mover-se no sentido contrário: encontrar a imagem certa, o sentido certo que permite tanto tornar real aquilo que se pensa e se experimenta quanto encontrar aquilo que possibilita a libertação disso tudo. Viver significa, antes de mais nada, dar sentido, sensificar o racional, transformar o psíquico em imagem exterior, dar corpo e experiência ao espiritual. (Coccia, 2010, p. 43-44)

Pensar as relações entre experiência estética e experiência sensível exige, portanto, atravessar as passagens entre os atos estéticos de composição de blocos de sensações, que definem a esfera das imagens artísticas, e os atos de recepção, emissão e produção de formas sensíveis, em geral, que definem a esfera das imagens em sentido amplo, como esfera do que Jacques Rancière denomina partilha do sensível, para pensar conjuntamente estética e política:

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (Rancière, 2005, p. 15)

O horizonte empírico ampliado que está em jogo no conceito de sensível se define, assim, no compasso de um movimento entre a arte e o mundo comum que nenhuma dialética é capaz de resolver, já que nenhuma síntese pode diluir a polarização que delimita seu jogo indecidível: não há oposição ou dicotomia entre arte e mundo, entre estética e política, entre a atividade de composição de blocos de sensações e a vida sensível que a abriga, mas uma relação que pode assumir configurações variáveis, no espaço e no tempo, mas remonta, em geral, ao que se poderia denominar, extrapolando em deriva a argumentação de Aby Warburg (2009, p. 127) sobre o período renascentista, uma “matriz cunhadora dos valores expressivos”. O vislumbre dessa matriz, que atravessa as diferenças de espaço e tempo entre as configurações variáveis de arte e mundo, depende do reconhecimento de duas características fundamentais do sensível, das imagens, das formas: sua “absoluta transmissibilidade” e sua “infinita apropriabilidade”, como escreve Coccia (2010, p. 59 e p. 68, entre outras), que argumenta: “Essa coincidência de apropriabilidade e alienabilidade da imagem é aquilo que define o estatuto de nossa própria experiência” (Coccia, 2010, p. 69).

Se o sensível se define por sua transmissibilidade e apropriabilidade, é possível pensar, como sugere Jacques Rancière (2005, p. 11), “os atos estéticos como configurações da experiência, que ensejam novos modos do sentir e induzem novas formas da subjetividade política”. Política e estética se definem, nesse sentido, em relação ao sensível, à sua partilha (que inventa e produz o comum de qualquer comunidade) e à sua reconfiguração (que desloca os termos do comum e perturba as ideias convencionais de comunidade a partir do dissenso). Se “[o] espírito ou a ‘cultura’ de um povo pode se produzir somente nessa atividade de emissão de sensível”, como argumenta Coccia (2010, p. 44), e essa atividade é, ao mesmo tempo, produtiva e receptiva, o que Rancière chama de “partilha do sensível”, como configuração do comum, emerge de processos históricos de transmissão do sensível.

Matrizes expressivas do excesso e as plataformas

Na esteira da discussão sobre o sensível, é importante sinalizar para a maneira como o discurso de forma ampla é atravessado pelo que pode ser entendido como matrizes expressivas do excesso, e aqui nos interessa destacar o modo como isso ocorre nas plataformas. Sobre a ideia de “plataformização” da internet, a noção foi sistematizada por Poell et al (2020) como

[…] penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais de plataformas em diferentes setores econômicos e esferas da vida. E, a partir da tradição dos estudos culturais, concebemos esse processo como a reorganização de práticas e imaginações culturais em torno de plataformas. (Poell et al, 2020, p. 5)

Nesse sentido, a discussão dos autores aponta para como a metáfora do explorador que navegava por um vasto oceano descobrindo pequenas ilhas foi suplantada por um cenário no qual enormes continentes formados por grandes conglomerados transnacionais de tecnologia e mídia dominaram a experiência dos usuários no espaço digital. Assim, grande parte senão a totalidade da vida online do mundo é condicionada sob as regras, lógicas e organização de um punhado de instituições. É nesse contexto que se coloca a discussão a seguir, com ênfase no discurso e na experiência com o audiovisual nas plataformas.

Talvez seja possível apontar um elo, uma continuidade temática e formal ao longo da história, entre algumas diferentes formas de mostrar e narrar e sua expressão no audiovisual. O melodrama e o sensacionalismo têm em comum o caráter excessivo e espetacular que os permeia, Martín-Barbero (1997) vai apontar que essas formas derivam de matrizes culturais comuns.

Faz-se indispensável propor a questão das matrizes culturais, pois só daí é pensável a mediação efetivada pelo melodrama entre o folclore das feiras e o espetáculo popular-urbano, quer dizer, massivo. Mediação que no plano das narrativas passa pelo folhetim e no dos espetáculos pelo music-hall e o cinema. (Martín-Barbero, 1997, p. 166).

As matrizes culturais são, para o autor, o que há de residual (Williams, 1983) nos meios de comunicação de formas de expressão e tradições narrativas anteriores e indeterminadas. No caso do cinema, a proposta de Gunning (2006) do cinema de atrações dá conta daquilo que permanece dos espetáculos de feira, music hall, vaudeville e números circenses no novo meio, ainda em formação na virada do século XIX para o século XX. Essa experiência fragmentária, estimulante e excitante tinha foco na relação entre o corpo do espectador e o tecido fílmico em si, fazendo emergir um engajamento sensorial e emocional (Elsaesser, 1991).

Para Hansen (1995), o primeiro cinema possuía um caráter disjuntivo de programação que apresentava um formato variável e fragmentado. Este aspecto se demonstra ainda nas particulares formas de mediação entre público e obra, como a interação construída por elementos extra-fílmicos, facetas que parecem se reapresentar na espectatorialidade do audiovisual nas plataformas. Nesse sentido, é importante reiterar a particular relação do melodrama com o corpo. Singer (2001) vai dizer que “crucial para um grande número de melodramas populares era o sensacionalismo, definido como uma ênfase na ação, violência, emoções, visões incríveis, e espetáculos de perigo físico” (p. 48)2No original: “Crucial to a great deal of popular melodrama was sensationalism, defined as na emphasis on action, violence, thrills, awesome sghts, and spectacles of physical peril.”. Essa ênfase está ligada a um “[…] elemento essencial, talvez mais frequentemente associado com melodrama é uma certa qualidade de ‘extenuação’ ou ‘exagero’ resumida pelo termo excesso” (Singer, 2001, p. 38-39).3No original: “The essential element perhaps most often associated with melodrama is a certain ‘overwrought’ or ‘exaggerated’ quality summed up by the term excess.”

Mais recentemente, Linda Williams (2018) fez uma contundente defesa do melodrama enquanto metanarrativa totalizante da modernidade, presente em diversas formas de arte, comunicação e expressão desde o final do século XVIII. O que é essencial no melodrama, segundo a autora, é o reconhecimento dramático do bem e do mal acarretando, justamente por tal reconhecimento, na concretização da justiça, seja qual ela for. Em um contexto social em que as telas estão em todo lugar, é fundamental pensar sobre a medida na qual o audiovisual nas plataformas opera como parte integrante do cotidiano e se apresenta como uma maneira de construir vínculos a partir da mediação por meio dos vídeos em si (Burgess, 2014), que para Bruns (2009) têm mais importância em seu valor de uso – na acepção do autor uma junção de produção e usabilidade, o “produsage” – do que no valor de produção intrínseco de cada obra ou produto audiovisual.

Nesse sentido e em linha com as abordagens da new cinema history (Elsaesser, 2018), essa aproximação do audiovisual nas plataformas com o primeiro cinema aponta para a partilha de uma mesma base discursiva, mas também para uma lógica espectatorial muito similar. Essa lógica está fincada na fragmentação, na multiplicidade de formatos, mas sobretudo em um quadro referencial compartilhado entre usuários/espectadores, aspecto que Burgess (2014) enfatiza ao argumentar que o valor de cada vídeo no YouTube, por exemplo, está colocado como um elo em uma rede de criação de conteúdo e valor dentro da plataforma.

Análise de audiovisual em escala massiva: um problema metodológico

“De uma imagem única, que representava a ‘unidade cultural’ […]”, escreve Lev Manovich, em seu livro The language of new media,

[…] nós avançamos para uma base de dados de imagens. Assim, se o herói de Blow-up (1966) de Antonioni estava procurando por verdade dentro de uma única imagem fotográfica, o equivalente dessa operação na era dos computadores é trabalhar com toda uma base de dados com várias imagens, procurando e comparando umas com as outras. (Manovich, 2001, p. 247).

Aqui o autor está destacando a lógica com a qual ele argumenta que os objetos de “novas mídias” (a mídia digital) operam, algo que implica em um deslocamento da abordagem analítica tradicional dos estudos midiáticos, em geral, e do cinema e do audiovisual, em particular.

Anos depois, o autor desenvolveu o conceito de “Cultural Analytics” (Manovich, 2017), que consiste em um estudo quantitativo dos padrões culturais em diferentes escalas, lançando mão de técnicas de coleta automatizada de conteúdo na internet e visualização em grande escala. Manovich (2017) entende que a pesquisa de artefatos únicos e o chamado “close reading” foram abordagens adequadas para o contexto do século XX, no entanto essas metodologias não se ajustam bem ao ambiente das plataformas digitais, pois um objeto visual nunca está em isolamento, mas sim inserido em uma extensa série que nos parece infinita. O autor argumenta que a análise cultural deveria então se deter na identificação de padrões culturais, em vez de tentar descobrir “leis” e o estudo de dados culturais visuais em escala massiva se refere a criação de ferramentas que permitam visualizar esses dados em primeiro lugar. Manovich ressalta que esta análise tem como objetivo identificar padrões recorrentes, porém é importante lembrar que esses padrões representam apenas uma parte dos aspectos dos artefatos e de sua recepção. Certas conclusões obtidas ao estudar grandes corpora de dados midiáticos não podem ser alcançadas apenas por teorias especulativas, a abordagem estatística, no entanto, tem suas limitações, pois não se aplica a todos os aspectos de um corpus. Não se explica tudo usando um modelo matemático e categorizando tudo que fica de fora como desvio ou ruído.

O trabalho de análise imagética automatizada não é novo e já foi realizado por Manovich (Manovich, 2017, 2020), com trabalhos focados na criação de ferramentas de categorização e sumarização dos dados digitais de vídeos como distribuição de informação de tonalidades de cor e contraste em coleções massivas de fotografias e mudanças espaciais no quadro e duração de planos em obras audiovisuais, por exemplo. Mais recentemente, Pearce et al (2020) se detiveram sobre o fenômeno imagético a partir de um olhar que cruza plataformas, mobilizando métodos similares para revelar padrões amplos no corpus coletado e propondo ainda outras maneiras de engajamento com o material, usando o próprio suporte visual. Nessa esteira, Burgess et al (2021) elaboraram um “método híbrido digital” chamado de “simulação crítica”, que consiste no uso de uma ferramenta de visão computacional codificada pelo grupo em plataformas de redes sociais como o Instagram. A análise então é empreendida em duas etapas, uma realizada pelo modelo de visão computacional que entra em contato com um corpus imagético desconhecido sem supervisão humana e o categoriza de acordo com as características “latentes” das imagens em si, e outra feita pelos pesquisadores, que fazem uma análise textual qualitativa dos aglomerados gerados pelo modelo. Os autores sugerem que essa abordagem de mesclagem de métodos permite especular no contexto das plataformas sobre como “[…] lógicas de visão computacional, uma vez aplicadas à curadoria algorítmica de conteúdo, por exemplo, podem desempenhar um papel na formação da estética da plataforma do Instagram […]” (Burgess et al., 2023, p. 4).

Essa discussão desnuda uma tensão fundamental no trabalho analítico centrado no audiovisual no contexto das plataformas, que se refere a dicotomia entre o único e o massivo. Cada vídeo é entendido como uma obra com um valor analítico próprio, mas ao mesmo tempo parte de uma coleção em larga escala cujo desenvolvimento estético ocorre de forma dinâmica a partir da mediação entre os vídeos, seus criadores e as instâncias algorítmicas em “[…] um ato de criatividade vernacular iterativa […]” (Burgess, 2014, p. 93)4No original: “[…] an act of iterative vernacular creativity that has emerged out of the conversational dynamics of YouTube […]”.. Assim, uma abordagem que proponha conjugar métodos digitais automatizados de análise e coleta de dados com tradições analíticas qualitativas típicas do campo do cinema e audiovisual pode se converter em um arranjo metodológico apropriado para o estudo deste tipo particular de objeto audiovisual, cujos formatos se apresentam e hibridizam de forma dinâmica e emergente no contexto da dimensão participativa e fragmentária de cada plataforma.

O conceito de (an)arqueologias

As (an)arqueologias do sensível aspiram, portanto, a uma compreensão da experiência, em geral, e da experiência estética, em particular, que faça justiça a seu estatuto imagético fundamental – e fundamentalmente contingente: transferível, transmissível e apropriável. Para desdobrar essa compreensão, a cada vez, será preciso pensar estética e política, arte e mundo, “blocos de sensações” e “partilha do sensível”, sem reduzir a relação entre os termos a oposições e a dicotomias, na medida em que se busca reconhecer e investigar as configurações variáveis da relação de polaridade e de intensificação que os define. As noções de “polaridade” e de “intensificação” correspondem às duas “leis” que, segundo Johann Volfgang von Goethe, governam tanto a natureza quanto a arte. Izabela Kestler (2006, p. 49) explica que as “leis da polaridade (Polarität) e da intensificação (Steigerung)” constituem “conceitos fundamentais” da “visão de mundo [de Goethe] como um todo, da natureza, da vida humana e da arte. O conceito de polaridade pertence à matéria, e o da intensificação ao espírito, pensados conjuntamente.” Efetivamente, a perspectiva das (an)arqueologias do sensível está baseada em um pensamento conjunto da “matéria” e do “espírito” (em vez de sua oposição numa dicotomia) e tem em seu horizonte a “redescoberta da noção goethiana de polaridade, usada para uma compreensão global de nossa cultura”, que, segundo Giorgio Agamben (2015, p. 125), “está entre as mais fecundas heranças que Warburg deixou à ciência da cultura”.

A abertura metodológica radical que define as (an)arqueologias do sensível articula as heranças da arqueologia do saber de Michel Foucault (2008), da (an)arqueologia das mídias de Siegfried Zielinski (2006), de Friedrich Kittler (2016, 2019) ou de Thomas Elsaesser (2018) e da ciência sem nome de Aby Warburg e de seu atlas Mnemosyne, tal como vem sendo retomada e reconfigurada, numa “arqueologia da cultura”, por Georges Didi-Huberman (2015, 2018b, p. 36). Se método é, etimologicamente, caminho, via, travessia, o que a noção de (an)arqueologias do sensível aspira a insinuar é o movimento aberto da exploração de uma deriva, em contraposição à demarcação de uma via unívoca de produção de conhecimento; a prática rigorosa do desvio e da digressão, do extravio e do acesso indireto, em contraposição à pretensão usual ao percurso direto e à clareza da trilha; a “espiral que amplia continuamente suas voltas”, segundo um movimento de “ir e vir da parte ao todo [que] nunca é um regresso, de fato, ao mesmo ponto” (Agamben, 2015, p. 123), em contraposição ao círculo como figura de fechamento – seja ele hermenêutico, analítico ou empírico.

Entre as heranças associadas ao conceito de arqueologia, está em jogo a reivindicação de uma perspectiva sobre a história (e sobre a historicidade) das imagens. Estudar a história das imagens – isto é, do sensível, de sua configuração numa partilha estético-política e de suas possíveis reconfigurações no cinema, nas artes etc. – a partir de uma perspectiva (an)arqueológica implica assimilar metodologicamente a contingência das imagens, a abertura irredutível a múltiplas temporalidades que deriva de sua transmissibilidade e apropriabilidade entre contextos, entre tempos, entre situações históricas. Pensar as imagens em seu movimento entre contextos implica articular perspectivas de contextualização histórica e um reconhecimento da descontextualização constitutiva de toda escrita da história, como argumenta Walter Benjamin (2006, p. 518):

Os acontecimentos que cercam o historiador, e dos quais ele mesmo participa, estarão na base de sua apresentação como um texto escrito com tinta invisível. A história que ele submete ao leitor constitui, por assim dizer, as citações deste texto, e somente elas se apresentam de maneira legível para todos. Escrever a história significa, portanto, citar a história. Ora, no conceito de citação está implícito que o objeto histórico em questão seja arrancado de seu contexto. (Benjamin, 2006, p. 518)

Reconhecer a descontextualização do objeto histórico que constitui toda forma de escrita da história é reconhecer um anacronismo irredutível, que deve ser pensado, como sugere Georges Didi-Huberman (2015, p. 28), como “um momento, como uma pulsação rítmica do método”. As (an)arqueologias do sensível assumem o “risco de abrir o método” (Didi-Huberman, 2015, p. 28), para que seja possível compreender de modo articulado, embora disjuntivo, na história das imagens, o que Benjamin descreve como “citações” que “se apresentam de maneira legível para todos” – as imagens existentes, as imagens que restam e que sobrevivem aos acontecimentos e à passagem do tempo – e o que permanece concebível, em seus termos, “como um texto escrito com tinta invisível” – as imagens que faltam, seja porque não sobreviveram à desaparição, seja porque sequer emergiram. “Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”, escreve Didi-Huberman (2017, p. 41). Assim como toda história está assombrada pela imaginação contrafactual do que poderia ter sido, toda arqueologia está atravessada por alguma anarqueologia, como escreve Hilan Bensusan:

A anarqueologia é o avesso da arché, no sentido de origem ou de fundamento, de começo e de comando, mas também no sentido de necessidade, aquela necessidade que o passado narrado como único carrega. A anarqueologia é uma tentativa de ajustar contas com o que deixou de acontecer e assim de buscar o abismo por trás do fundamento, uma iteração por trás da origem e uma contingência por trás da história supostamente constitutiva do pensamento. […] A anarqueologia explora o contrafactual passado investigando como as coisas poderiam ter sido contadas já que há mais memória do que qualquer relato escolhido. Ou seja, o espaço da anarqueologia é aquele em que o passado consagrado é sublevado, não porque a imaginação atenta contra a memória, mas porque ela é um jeito de escavar a memória por um caminho mais longo. […] A anarqueologia tem um elo íntimo com a espectralidade. A outra história ronda a história que se conta. Nós vivemos às sombras dos espectros – das heranças, tradições, instituições estabelecidas, da história oficial. Se uma peça de ficção pode apresentar um outro modo como poderiam ser as coisas agora, um exercício de anarqueologia apresenta um outro modo como poderiam ter sido as coisas outrora – e assim atua sobre fantasmas. (Bensusan, 2024, p. 79–80)

Entre as imagens que restam e as imagens que faltam, as (an)arqueologias do sensível buscam entrever a história como um processo de transformações na partilha do sensível que define toda forma de comunidade política, insistindo na possibilidade de (re)imaginar os mundos que habitamos, em que transitamos – e que somos – de outras maneiras.

Referências

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Notas

  • 1
    Para citar este texto: LEPRI, Adil; RIBEIRO, Marcelo R. S. História e marcos conceituais do grupo (an)arqueologias do sensível. GAS – grupo (an)arqueologias do sensível, 2024. Disponível em: https://gas.ufba.br/sobre.
  • 2
    No original: “Crucial to a great deal of popular melodrama was sensationalism, defined as na emphasis on action, violence, thrills, awesome sghts, and spectacles of physical peril.”
  • 3
    No original: “The essential element perhaps most often associated with melodrama is a certain ‘overwrought’ or ‘exaggerated’ quality summed up by the term excess.”
  • 4
    No original: “[…] an act of iterative vernacular creativity that has emerged out of the conversational dynamics of YouTube […]”.